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9 August 2010

Dois fóruns urbanos, duas ilusões

http://passapalavra.info/?p=27499

Dois fóruns urbanos, duas ilusões

Pelo que se viu, o “fórum alternativo” não era alternativa nenhuma, e por isso comecei a pensar: precisamos de uma alternativa à “alternativa”… Por Marcelo Lopes de Souza

Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a era da sabedoria, foi a era da insensatez, foi a época da crença, foi a época da incredulidade, foi a estação da Luz, foi a estação da Escuridão, foi a primavera da esperança, foi o inverno da desesperança, tínhamos tudo à nossa frente, nada tínhamos à nossa frente, íamos todos direto para o Céu, íamos todos direto no sentido oposto – abreviando, esse período era tão desigual ao presente que algumas das suas mais barulhentas autoridades faziam questão de serem recebidas, para o bem e para o mal, num grau superlativo de simples comparação.
(Charles Dickens, Um conto de duas cidades)

Um (brevíssimo) conto de dois fóruns urbanos

Um conto de duas cidades, um dos dois “romances históricos” de Charles Dickens, foi escrito por ele em 1859. Passa-se em Londres e em Paris antes e durante o tempo da Revolução Francesa, e mostra o contexto que contribuiu para esta revolução: pobreza de um lado, elitismo do outro, sendo a opressão e a brutalidade os elos de ligação entre os dois. Neste romance as cartas têm um papel importante. E também foi assim quando eu troquei alguns e-mails com o meu amigo e camarada Richard Pithouse (ativista urbano e filósofo, professor no Departamento de Política da Universidade Rhodes, em Grahamstown), para falarmos sobre o que estava acontecendo por esses dias de março de 2010, quando dois fóruns urbanos – o Fórum Urbano Mundial (FUM) e o Fórum Social Urbano (FSU) – tiveram lugar no Rio de Janeiro.

Esses dias de março foram sobretudo um tempo de ambiguidade e ambivalência. Um tempo de contradições, dir-se-ia. Não necessariamente “o pior dos tempos” (se bem que, se pensarmos nas estatísticas relativas aos problemas urbanos em cidades como o Rio, da falta de habitações à criminalidade…), mas seguramente também não “o melhor dos tempos”; seja como for: era, curiosamente, “a era da sabedoria”, mas ao mesmo tempo “a era da insensatez”. Terá sido “a primavera da esperança” – ou, considerando a crua realidade e a crescente (e literalmente armada) impaciência de muitos (os pobres, os espoliados), “o inverno da desesperança”?…

O relato seguinte contém apenas algumas notas pessoais (baseadas nas minhas “notas de campo”) e uma citação de um dos e-mails que Richard me enviou. Trata-se, meramente, de um convite à reflexão.

Primeiras impressões

O terceiro dia do FUM, 22 de março de 2010, foi também o primeiro dia do FSU (“o outro”), concebido para ser uma alternativa ao primeiro (considerado pelos participantes do Fórum Social Urbano como o “conservador”). Começou de forma interessante, apesar da repressão: dezenas de movimentos sociais (direta ou indiretamente envolvidos no FSU) organizaram uma manifestação; centenas de pessoas dirigiram-se ao local onde tinha lugar o FUM para protestarem – de forma pacífica e criativa, mais ou menos no estilo de um “Dia de Ação Global” (ver fotos 1 a 6). Aqui e ali ouvia-se falar inglês, e até mesmo alemão e francês, algo mais o espanhol, mas creio que pelo menos 90% dos que protestavam vinham de diferentes regiões do Brasil, e em especial do próprio Rio de Janeiro, sendo que as pessoas cantavam e gritavam palavras de ordem em português.

Nesse ínterim, Lula da Silva, o governador do estado do Rio de Janeiro (Sérgio Cabral) e o prefeito da cidade do Rio de Janeiro (Eduardo Paes) estavam dentro do edifício onde decorria o FUM. Então veio a polícia – com spray de pimenta e cassetetes, como de costume… As pessoas resistiram o que puderam e enquanto puderam, mas os participantes do FUM limitaram-se a ficar olhando, em geral sem mostras de solidariedade (antes pelo contrário). Por fim, os manifestantes decidiram dirigir-se ao recinto do FSU, provocativamente situado a apenas 300 metros do FUM, na Zona Portuária do Rio de Janeiro.

O ponto alto dessa segunda-feira no “fórum alternativo” foi uma mesa-redonda com David Harvey e duas urbanistas brasileiras (Ermínia Maricato e Raquel Rolnik), à noite. Peter Marcuse também era aguardado como participante nesta mesa-redonda inaugural, mas só chegou ao Rio na terça-feira devido a problemas com o visto. A propósito: Harvey, Marcuse, Maricato e Rolnik também participaram no FUM. [1]

Ao fim do dia, escrevi um e-mail mais ou menos otimista a Richard Pithouse acerca do FSU. Richard estava muito interessado em seguir ambos os fóruns de perto por várias razões, mas sobretudo porque uma delegação de quatro ativistas do Abahlali baseMjondolo (o movimento de sem-teto [squatters] de que é um dos organizadores) [2] estava participando tanto no FUM como (convidados por mim e a minha equipe de colaboradores na Universidade Federal do Rio de Janeiro) no FSU. (Na verdade, o principal interesse dos ativistas do Abahlali era participar no FSU e encontrar-se conosco; a participação no FUM foi um expediente, pois assim conseguiram que lhes pagassem a viagem.)

Olhando mais de perto…

Todavia, à medida que o tempo foi passando, eu fui tendo sentimentos contraditórios – pelo menos, ou em particular, quanto ao FSU. O FUM era uma frustração para muita gente – (praticamente) desde o começo. “Governo demais (e acadêmicos e consultores), ONGs demais, e verdadeiros movimentos sociais de menos”, era uma crítica que se ouvia dos ativistas. Eu, de fato, não me sentia “frustrado”, porque simplesmente não alimentava quaisquer grandes expectativas. Mas devo confessar que fiquei bastante frustrado com o Fórum Social Urbano. Quando terminou, na sexta-feira 26 de março, o meu entusiasmo (relativo) dera lugar à decepção.

A estrutura do Fórum Social Urbano parece ter sido bastante influenciada por um grupo específico de pessoas, essencialmente composto por acadêmicos e alguns ativistas vinculados a algumas grandes ONGs ou a certos partidos políticos. As estratégias de controle são complexas, muitas vezes sutis e dissimuladas; basta notar que, à primeira vista, um número bastante grande de entidades, ao menos formalmente, “participou” da concepção e estruturação do FSU. Entretanto, qual foi a efetiva capilaridade do processo de envolvimento de todas as entidades e dos grupos sociais que, aparentemente, muitas delas “representam”? E mais (questão não menos decisiva): qual foi a capilaridade do FSU para fora desse conjunto de entidades, para envolver pelo menos uma parte expressiva da vasta população pobre e segregada da própria cidade do Rio de Janeiro?…

Houve, no FSU, muitos estudantes universitários (geralmente de classe média), e também pesquisadores acadêmicos de todos os tipos, além de técnicos de ONGs etc. Havia, ainda, vários ativistas de origem humilde, inclusive militantes da luta pela moradia, pessoas pobres que tinham vindo da periferia da cidade e até de ocupações de sem-teto. Porém, não eram essas pessoas humildes que, no frigir dos ovos, pareciam dar o tom. Mais pareciam figurantes, em alguns casos talvez coadjuvantes ? cuja presença legitimadora, sabe-se, é imprescindível em qualquer “espetáculo” dessa natureza, que a classe média acadêmica (“de esquerda”) e as ONGs tão bem sabem organizar e capitalizar em seu benefício. Mas não pareciam ser propriamente protagonistas. Algo estava errado.

Em uma cidade na qual um terço da população vive em favelas, e um percentual muito maior ainda vive em espaços que podem ser considerados segregados e estigmatizados sócio-espacialmente (o que inclui, além das favelas, os loteamentos irregulares da Zona Oeste, as ocupações de sem-teto do Centro, da Zona Portuária e de outros lugares, e por aí vai), foi desapontador topar com uma iniciativa como um fórum dito Social Urbano e apresentado como uma alternativa ao Fórum Urbano Mundial, mas frequentado, no que se refere à população pobre (ou seja: tirando o enorme percentual de pesquisadores e estudantes universitários e quadros de ONGs), muito desproporcionalmente por líderes de entidades associativas e de grandes organizações vinculadas à luta pela moradia ? organizações essas que, não raro, assumiram um figurino e uma dinâmica mais próximos de grandes ONGs que de genuínas organizações de movimentos sociais, e cujos dirigentes se comportam amiúde como funcionários burocratizados, especializados em negociar com governos e partidos. Especialmente chocante, contudo, foi verificar que, entre os acadêmicos, a maioria parecia não perceber ou não se incomodar com esses fatos. Assim como parecia não perceber ou não se incomodar com a perversa segregação sócio-espacial que se construiu no próprio espaço do Fórum Social Urbano, em que, imediatamente atrás do enorme e belo prédio que abrigou as mesas-redondas, oficinas e reuniões, havia um terreno no qual pessoas pobres (oriundas de ocupações de sem-teto, de favelas etc.) vendiam, de forma improvisada e precária, refrigerantes e comida ? para atender aos participantes.

Estes problemas foram detectados, por mim e por alguns mais, logo no começo; mas foram-se tornando cada vez mais evidentes fatores de descontentamento e mesmo indignação com o passar dos dias. O resultado disto foi que um número crescente de participantes do “fórum alternativo”, na quinta e na sexta-feira, pediram a palavra para fazer algumas críticas. Pelo que se viu, o “fórum alternativo” não era alternativa nenhuma, e por isso comecei a pensar: precisamos de uma alternativa à “alternativa”…

Conforme escrevi a Richard, ao dar-lhe parte de minha decepção, é preciso compreender o que está por trás desta situação. Tentarei resumir os problemas (do meu ponto de vista), dos mais específicos para os mais gerais:

1) O Fórum Social Urbano poderia ter sido uma iniciativa realmente promissora, não fosse ele ter sido “colonizado”, desde o começo, por um pequeno grupo de acadêmicos e ativistas, muitos deles fortemente vinculados com partidos políticos e/ou com algumas grandes ONGs. Eles formam uma espécie de rede que somente à primeira vista parece ser uma autêntica alternativa a instituições tais como HABITAT (das Nações Unidas) e governos; na prática, muitos (ou a maior parte) deles têm ou teve conexões com tais instituições, em que pesem certas aparências que iludem a pensar o contrário.

2) A rede supramencionada influenciou o processo decisório sobre quem falaria, onde falaria etc. É de se perguntar: será que as prioridades e dinâmicas assim estabelecidas correspondem, de fato, às reais necessidades e expectativas dos movimentos sociais e dos ativistas de base? Minha resposta é um claro não. O grupo que constitui a referida rede (certamente não monolítica, e identificável apenas em seus nebulosos contornos gerais) não facilitou as coisas para diversas organizações de movimentos sociais, de tal modo que uma importante reunião ocorrida na quarta-feira (organizada pela “frente de organizações” chamada de [Re]Unindo Retalhos) acabou por contar com somente cerca de vinte participantes. (O que, certamente, não foi culpa apenas da organização do evento e de sua estrutura; apenas desejo chamar a atenção para a contribuição que tais fatores tiveram.)

3) Seja lá como for: como eu havia dito a Richard em dezembro (quando encontrei com ele na Alemanha, por ocasião de um simpósio) e a David Ntseng (um dos ativistas da Abahlali que visitaram o Rio de Janeiro e que foram recebidos e ciceroneados por mim e outros companheiros), por e-mail, alguns dias antes do início dos dois fóruns (e, depois, repeti isso pessoalmente, ao conhecê-lo pessoalmente no Rio), os movimentos sociais urbanos do Brasil vêm experimentando uma profunda e complexa crise nos dias que correm ? e, a rigor, já há bastante tempo. Existem muitas organizações (algumas delas são importantes, ao passo que outras são pequenas ou até minúsculas); mas, por outro lado, tem sido difícil mobilizar e organizar as pessoas. Ou seja: via de regra, as bases sociais dessas organizações se acham pouco mobilizadas, o que compromete a força social das organizações e facilita o agravamento de processos de burocratização, os quais aproximam as mesmas mais e mais de políticos profissionais e partidos políticos. Entre os fatores desse quadro, os seguintes poderiam ser mencionados:

(a) O papel dos partidos políticos (inclusive ou, até mesmo, sobretudo vários ditos “de esquerda”, especializados na cooptação, na manipulação e na instrumentalização da população pobre.

(b) O papel das ONGs (que não necessariamente é, mas muito freqüentemente se deixa resumir, no que se refere à sua relação com os pobres, por meio de duas palavras: manipulação e tutela).

(c) O papel de muitos “acadêmicos progressistas” (que amiúde vão dos que se comportam como “vampiros” dos movimentos – isto é, estudando-os mas não contribuindo nada na prática – àqueles que tentam dirigir e controlar as organizações dos movimentos sociais – por vezes mais ou menos servindo os interesses de um partido político).

(d) Os efeitos da disseminação da corrupção no nosso sistema político: comportamento cético, crescente perda de interesse em tudo o que respeita à vida pública…

(e) O papel dos meios de comunicação de massa (muito importante no Brasil, para manter os pobres ocupados com o futebol, as novelas e séries de televisão e todo gênero de lixo intelectual).

(f) O papel de intimidação e desmoralização dos grupos e organizações criminosos dentro dos próprios espaços segregados.

(É interessante verificar que a realidade é, em grande parte, bem diferente quando consideramos o que está acontecendo com os movimentos sociais do campo – pense-se, para começar, na organização MST [Movimento dos Trabalhadores Sem Terra], entre outras…)

Seja como for, houve algumas oportunidades para encontrar gente interessante durante o FSU – e, para mim, os meus colaboradores e alguns ativistas brasileiros, isso consistiu sobretudo no encontro com os militantes do Abahlali baseMjondolo: David Ntseng, Louisa Motha, Mnikelo Ndabankulu e Mazwi Nzimande. Mais tarde escrevi aos companheiros sul-africanos que podia imaginar quão frustrante, em muitos aspectos, terá sido também para eles o fórum “alternativo”. Num e-mail que me enviou, David Ntseng não teve papas na língua:

“Ambiguidade e ambivalência são características do FSU e você tem razão: o FUM era claramente um espaço do governo e da HABITAT da ONU. Mas no caso do FSU é lamentável que ele não tenha sido a alternativa por que muitos de nós ansiavam.”

Eu respondi que, de qualquer forma, terá sido pelo menos uma ocasião para vermos a nossa realidade como ela é, e não apenas como “poderia ser”… “Se vocês perceberem as nossas fraquezas e contradições – juntamente com as nossas potencialidades”, disse-lhe, “então poderão ajudar-nos muito mais”.

A resposta de Richard

Neste ponto do relato, é interessante reproduzir o essencial dos comentários de Richard sobre os meus e-mails destes dias.

“Aí está a minha impressão de que, há muito tempo, sempre tem havido o espaço oficial (centrado no Estado) e o espaço alternativo (centrado nas ONGs e nos acadêmicos). Mas o espaço alternativo, liderado e dominado pelas ONGs e por alguns acadêmicos, também se autodefine como a voz das lutas na base [grassroots struggles], quando é claro que não o era. O Abahlali baseMjondolo (AbM), juntamente com a Campanha Anti-Expulsão (CAE) do Cabo Ocidental, retiraram-se em 2006 de um dos principais espaços “alternativos” para criarem um espaço genuinamente autônomo dos movimentos – um espaço organizado por e para os movimentos. Por causa disso, como era de esperar, foram violentamente atacados pelas ONGs e pela esquerda acadêmica – processo que ainda continua. E, claro, assim como o Estado não é capaz de conceitualizar os organismos de representação dos pobres e sempre tem de culpar alguma conspiração da classe média, do mesmo modo a classe média de esquerda só é capaz de ver na saída [dos movimentos] uma conspiração de alguma facção rival da classe média.

“Considero que a saída foi uma atitude muito corajosa da CAE e do AbM e que lançou as bases para a possibilidade de uma política independente ou autônoma dos pobres. Claro que, para um intelectual da classe média, isso representou um duplo desafio:

“1. Primeiro, escolher entre ir-se embora com os movimentos, ou ficar onde estão o dinheiro, o poder e as oportunidades de carreira da classe média de esquerda. Algumas pessoas fizeram a escolha correta, outras tomaram decisões muito decepcionantes.

“2. Como devemos considerar a situação real, quando, por um lado, o espaço “alternativo” é de fato o projeto de uma elite rival, ainda por cima recusado pelos movimentos, e, por outro lado, não sermos injustos nos textos que escrevemos?

“Eu penso que Peter Hallward aborda bem a questão no seu livro sobre o Haiti [3]. Nos meus escritos, tentei refletir com precisão esta distinção tantas vezes ignorada entre movimentos e espaços ONGs/acadêmicos – isto é, fazer uma distinção entre a “esquerda de base [grassroots left]” e a “esquerda da ‘sociedade civil’” [4]. É muito importante utilizar a terminologia correta. Mas esta não é uma mera questão de produzir os termos corretos. Muitas vezes é também uma questão política. Muitas vezes é difícil dizer estas verdades nos espaços acadêmicos e de ONGs. A esquerda autoritária (que é por vezes o principal interlocutor do poder na “sociedade civil”) serve-se de todo o gênero de ataques pessoais, e também das calúnias, como formas institucionais de autoritarismo (por exemplo, processos disciplinares, ou mesmo tentativas de censura de trabalhos acadêmicos com ameaças de processos judiciais ou ameaças de denunciar as pessoas aos patrões universitários) para levar as pessoas a terem medo de discutir esta questão e dar continuidade à ficção segundo a qual os espaços ONGs/acadêmicos são a mesma coisa que os espaços dos movimentos, o que obviamente não são.”

À maneira de um balanço

Penso que as palavras de Richard sintetizam brilhantemente os desafios mais decisivos que enfrentam os acadêmicos progressistas (com ou sem aspas). Este e-mail quase não precisa de comentários. É, todavia, conveniente sublinhar um ponto em particular.

No que diz respeito ao FUM, ao menos sabemos melhor o que esperar e o que não esperar; não há, ou não deveria haver há muito tempo, creio, lugar para ilusões – sejam quais forem os ganhos possíveis e específicos em conhecimento e em “sinergias”. (Que fique bem claro: não pretendo passar a impressão de ser leviano, inconsequente e injusto a ponto de negar a possibilidade de que falas e reuniões interessantes possam existir ou tenham de fato existido no âmbito de algo como o Fórum Urbano Mundial. Mas não se trata disso; a questão política central não é a da possibilidade ou não de algumas “falas e reuniões interessantes”, muito menos a de saber quantas das pessoas que participaram do referido Fórum o fizeram imbuídas das melhores intenções e de algum tipo de “idealismo”. A questão que importa é aquela relativa às limitações e aos vícios desse tipo de ambiente, e, ao fim e ao cabo, às ilusões permanentemente reproduzidas por ele, e que o tornam, em grande medida, antes parte do problema que da solução.) Mas o que dizer acerca de uma “alternativa” que não é alternativa nenhuma, em um sentido essencial? Que papel querem representar os acadêmicos? Tanto em termos de debate acadêmico como político acerca de alternativas e possibilidades, as discordâncias são inevitáveis, uma vez que há enormes assimetrias e interesses objetivamente (e muitas vezes subjetivamente) extremamente divergentes. Talvez estas discordâncias não nos impeçam de, por vezes, aprendermos uns com os outros, num contexto de compromisso com o diálogo mais do que com a confrontação. (Claro que a confrontação é por vezes inevitável, talvez mesmo necessária, em particular nos casos em que o aparelho de Estado responde às palavras e aos argumentos com gás, spray de pimenta e com balas.) É preciso ser sincero. Eu não gostaria de “moralizar” um debate eminentemente político, mas a sinceridade e a igualdade são premissas fundamentais, e isso significa que as organizações de pobres têm de ser levadas a sério como parceiras de todas as conversas sobre problemas, cenários e alternativas. Foi por isso que o Abahlali baseMjondolo exigiu à classe média de esquerda das universidades e das ONGs: “Falem conosco, não sobre nós” [5] Aos olhos de muitos ativistas de base, e do povo pobre em geral, tanto o pessoal das ONGs como os acadêmicos (com o seu substrato típico de classe média) foram-se tornando cada vez mais objeto de profunda desconfiança política, precisamente devido ao tipo de hipocrisia que muitos podiam sentir no FSU; uma espécie de ambiguidade, por vezes um discurso dúplice. Talvez o FUM tenha sido, em comparação, pelo menos mais “transparente”…

Notas

[1] Tanto Ermínia Maricato como Raquel Rolnik são importantes planejadoras urbanas, historicamente ligadas ao Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula. Ambas trabalharam no Ministério das Cidades criado logo no início do primeiro mandato de Lula (Maricato foi Secretária Executiva [2003-2006], e Rolnik foi Secretária Especial de Programas Urbanos [2003-2007]). Raquel Rolnik é presentemente relatora especial das Nações Unidas para a habitação adequada. É interessante ainda registrar que Peter Marcuse, em seu “blog”, escreveu após os fóruns um artigo sob o título “Dois fóruns urbanos mundiais, dois mundos separados” (“Two world urban forums, two worlds apart”), no qual ele faz afirmações tais como “os fóruns eram extremamente diferentes, quase como se existissem em dois mundos distintos, mas se toleraram reciprocamente” (“The forums were extremely different, almost existing in two different worlds, but they tolerated each other”) e “cada fórum era aberto relativamente ao outro, e aceitava a existência e a legitimidade do outro, com as discordâncias sendo antes civilizadas que confrontativas” (“Each forum was overtly tolerant of the other, and accepted the existence and legitimacy of the other, with disagreements civilized rather than confrontational”). É de se perguntar como tais afirmações puderam ser feitas com aparente convicção, já que ele não esteve presente, conforme já dito, no primeiro dia do Fórum Social Urbano, e por conseguinte perdeu a marcha de protesto (cuja existência, provavelmente, nem sequer lhe foi noticiada); ademais, uma vez que não fala português, ele permaneceu totalmente dependente da tradução das falas (cuja cobertura não foi completa, inclusive porque muitas discussões ocorriam “nos bastidores” do evento, quase sempre em português). De toda maneira, uma coisa é praticamente certa: se tivesse dependido de uma parcela dos organizadores do FSU, provavelmente o protesto nem teria ocorrido, muito menos a tentativa de resistir ao assédio da polícia. Nesse sentido, considerando que a insatisfação para com a estrutura do FSU e os rumos que este acabou tomando era fundamentalmente visível entre os ativistas de base, aos quais Peter Marcuse não poderia ter tido acesso direto e sem mediações, sua interpretação não deixa de ser, para além de sintomática de alguns problemas, expressão de um fato: a ambiguidade essencial do FSU.

[2] O Abahlali baseMjondolo não é, a rigor, um movimento de favelados. Morfologicamente, os assentamentos da Abahlali são muitíssimo semelhantes a favelas [bairros de lata]; no entanto, trata-se de algo tão politizado e organizado (sem contar outras peculiaridades, por exemplo no tocante à gênese), que eles são, na verdade, antes comparáveis ao movimento dos sem-teto brasileiro (“sem-teto”, no Brasil, ou no sentido desse movimento, NÃO é “população de rua”, “homeless” [em Portugal, os sem-abrigo], mendigo/pedinte: são os equivalentes urbanos dos sem-terra, que ocupam terrenos e prédios nas cidades).

[3] V. Hallward, 2008.

[4]V. por exemplo Pithouse, 2007a e 2007b. V. também Esteves, Motta e Cox, 2009, e Souza, 2006 e 2010.

[5] Em inglês: “Talk to us, not about us”. V. Pithouse, 2007b, Ndabankulu, Nsibande e Ntseng, 2009. Uma variante mais completa é: “Talk to us, not about us, not for us”.

Referências

Dickens, C. (2007 [1859]): A Tale of Two Cities. Londres: Penguin Popular Classics.

Esteves, A. M., Motta, S. e Cox, L. (2009): ‘Issue two editorial: “Civil society” versus social movements’, Interface: a journal for and about social movements, 1(2), pp. 1-21. http://interface-articles.googlegroups.com/web/editorial2.pdf.

Hallward, P. (2008): Damming the Flood: Haiti, Aristide, and the Politics of Containment. Londres: Verso.

Ndabankulu, M., Nsibande, Z. and Ntseng, D. (2009): ‘Abahlali baseMjondolo: Reclaiming our dignity and voices’ [Entrevista conduzida por Sokari Ekine], on-line: http://www.pambazuka.org/en/category/features/58979, 8 de julho de 2010.

Pithouse, R. (2007a [2006]): ‘Rethinking public participation from below’, on-line: http://abahlali.org//////node/585, 8 de julho de 2010 (originalmente publicado em Critical Dialogue; versão PDF completa: http://abahlali.org//////file/Critical%20Dialogue%20ABM.pdf).

Pithouse, R. (2007b): ‘The university of Abahlali baseMjondolo’, http://abahlali.org//////node/2814

Souza, M. L. de (2006): ‘Together with the state, despite the state, against the state: social movements as “critical urban planning” agents’, City 10(3), pp. 327–342. (Para os leitores de Portugal e Brasil, registre-se que o conteúdo desse artigo está também presente, e muito mais desenvolvido, em um livro meu, A prisão e a ágora, publicado em 2006 pela editora Bertrand Brasil, do Rio de Janeiro.)

Souza, M. L. de (2010): ‘Which right to which city? In defence of political-strategic clarity’, Interface: a journal for and about social movements, 2(1), pp. 315-333. On-line: http://interface-articles.googlegroups.com/web/3Souza.pdf, 8 de julho de 2010.

Origem do texto e agradecimentos

Este artigo tem por base a tradução, feita pelo coletivo Passa Palavra em português de Portugal, de meu artigo “A (very short) tale of two urban forums”, que está para sair publicado na Inglaterra. À competente tradução do Passa Palavra ? pelo que muito lhe agradeço ? acrescentei diversas passagens ausentes do texto original em inglês, e procedi também a várias modificações menores. E tantos foram os acréscimos e tantas as alterações que terminei por adaptar a sua versão ao português do Brasil. Por fim, gostaria de expressar a minha gratidão igualmente às pessoas a quem agradeço também no texto original: Richard Pithouse, David Ntseng e Anna Richter, por seus comentários críticos e suas sugestões (e, no caso de David, também por duas fotos aqui usadas; as outras foram-me indicadas pelo Passa Palavra).

Marcelo Lopes de Souza é professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde coordena um grupo de pesquisas cujo foco principal são os vínculos entre as relações sociais e o espaço, e particularmente a espacialidade das mudanças sociais.